Olá cara amiga. Cá estou de novo. Sempre gostei de estar ao pé de ti. Fazes parte da minha vida. Não sei quando me dei conta de ti pela primeira vez, mas sei que foi ainda durante a minha infância. Mas na altura não te ligava muito. Era criança e depois adolescente e tinha muito em que pensar. Tu eras apenas alguém que sempre aqui estavas.
Foi quando regressei da tropa que passei a dar-te importância. Foi um regresso duro. Não que tivesse estado nas ex-colónias, como mais tarde aconteceu a muitos. Nessa altura o regime ainda não mandava ninguém para as colónias. Não interessava. Eram tesouros reservados a apenas alguns escolhidos, colonos ricos que tinham séquitos sem fim a servi-los. Não, a minha tropa foi muito banal. Dezasseis meses fechado num quartel qualquer. Como a maioria dos meus camaradas, eu era apenas mais um ignorante oriundo de uma aldeola com um nome difícil de pronunciar. Como não sabia escrever, também não sabia pronunciá-lo e por isso em cada repartição a que me dirigia ficava a morar numa aldeia de nome diferente. Alfavés, Afoves, Alfôvas, Alouvés, enfim, todas as variações que as diferentes pronúncias de cada funcionário de repartição conseguiam interpretar.
Dizia-te que foi um regresso difícil, porque vim de longe e não tinha dinheiro. O pouco que nos davam no exército era gasto em copos de três e em cigarros de aspecto e sabor bem pior que os maravilhosos Provisórios e Definitivos que mais tarde apareceram nas tabernas. Como todo o dinheiro era gasto, nunca cá vim durante os dezasseis meses. Por isso o regresso foi tão doloroso. Não foi por ter demorado duas semanas entre quilómetros a pé, dormidas na borda da estrada ou nalgum confortável banco de jardim em alguma cidade que se me atravessou no caminho. Foi difícil porque não sabia quem iria encontrar. Foi difícil porque não sabia se alguém me reconheceria. Afinal tinha saído daqui criança e dezasseis meses depois era uma espécie adulto feito à força. Até já a barba tinha umas manchas mais claras que o desejável, especialmente visíveis por terem estado duas semanas sem ser aparadas.
Depois de subir a ladeira foste primeira pessoa que vi. Sorriste para mim, indicando-me que me reconheceras. Foi algo completamente inesperado. Eu já mal me lembrava de ti mas esse teu sorriso sedutor acordou-me. Fez-me lembrar de tudo o que cá tinha deixado. De todos os que faziam parte da minha vida antes da partida e que eu simplesmente apagara da minha memória em escassos dezasseis meses.
Foi junto a ti que rapidamente soube de tudo o que se passara durante esse tempo. O meu pai, se assim se pode chamar a alguém cujas palavras para mim se resumiram a coisas como “vai trabalhar, malandro”, “faz-te à vida, filho da puta” e “não me chateies os cornos”, o meu pai, dizia, tinha finalmente decidido fugir para parte incerta com uma das mulheres de fora que cá apareciam nas campanhas da apanha da azeitona. A minha mãe, que sempre fora uma desgraçada, morrera três meses antes de eu regressar. Fora encontrada morta em casa, enrolada sobre si própria na sua cama.
Aqui estava eu, sem dinheiro nem família nem amigos. Restavas-me tu, que me sorriste quando cheguei. Restava-me também a casa dos meus pais, perto de ti. E assim víamo-nos todos os dias. Fui conversando contigo toda esta vida. Todos os dias me vias chegar aqui ao largo pelas seis e meia da manhã para ver se arranjava patrão. Na altura da cava da vinha lá me ia safando. Davam-me três réis por dia e ofereciam-me o almoço. Sem ninguém ver, cortava uma fatia de pão duro que, juntamente com meia dúzia de azeitonas e às vezes uma rodela de morcela rançosa, colocava no bolso. Era para o jantar. Às vezes penso que até viam, mas não diziam nada fazendo silenciosamente uma simpatia com esta miserável criatura de Deus. Noutras alturas comia o pouco que as moedas conseguiam comprar. Fazia muitas vezes pequenos trabalhos simplesmente em troca de algo que pudesse trincar.
Os anos foram passando e nunca mulher nenhuma se interessou por mim. O meu aspecto desleixado não ajudava, mas o pior era que todos sabiam que não dava futuro a ninguém. Além disso estava apaixonado por ti. Sempre estive. E tu foste sempre minha amiga, minha confidente. Sabias ouvir-me sem me recriminares. Sempre foste muito boa. É verdade que me fazias a vida negra. Não podia suportar que desses a outros o teu sorriso. Não podia suportar que fosses a confidente íntima de outros. E muitos deles casados e sem vergonha. Por isso por vezes amaldiçoava-te. Tinha-te uma raiva de morte. Mas fazíamos as pazes depressa. Eu não podia viver sem ti. E afinal nunca me tinhas prometido fidelidade. Apenas que sempre aqui estarias para me ouvir.
Continuo a amar-te do fundo do coração. Já não apaixonado porque o coração já não aguenta essas emoções. Continuas a ouvir-me com atenção e paciência. E quanto ela te deve ser necessária quando, com dois copos de vinho a mais, te digo coisas que nunca deveria deixar sair. Mas hoje digo-te tudo. Agradeço-te teres sido a minha única companhia nesta vida solidária. Teres sido a minha única razão de viver. Única. Em conjunto com os copos de vinho mal cheiroso que os gozões me pagam só para me ver a trocar os pés até chegar a casa. Hoje digo-te tudo porque sinto que não mais voltarei a falar contigo. Estou velho. Espanta-me que tu continues com esse ar jovial de cabelos ao vento. Eu estou velho e acabado. Vou finalmente descansar. Vou levar no meu bolso uma semente tua. Quando o caixão apodrecer, nas últimas chuvas de uma Primavera, nascerá o único fruto do nosso amor. Uma linda e frondosa Palmeira!
Rene
(texto ficcional, publicado originalmente no meu blog pessoal)
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6 comentários:
Bastante interessante este conto, não te conhecia a veia literaria.
A historia vai muito de acordo com o blog, gostei. Estás a vontade para adicionar novos textos sempre que quiseres.
Aliás, e esta é para todos caso alguém tenha ideias para novos tópicos, basta que falem comigo, pois apesar de ter sido eu o criador, ele não me pertence a mim, mas sim a todos os conterrâneos que queiram participar.
Coitado do gajo...
Vida miserável, e ainda por cima ter de gramar com a Palmeira em cima para toda a eternidade...
lololol
Muito, muito, muito bom!
Umas das imensas histórias da Palmeira!
Esperamos ter pronto para este fim de semana ou para o outro a evolução da mesma! Da Palmeira, claro!
Com reportagem fotográfica desde pequena até aos dias de hoje...
Oxalá a imaginação nos permita...
Tenho ainda a acrescentar que, a nossa Palmeira, é mesmo confidente de muita gente! É testemunha de muita coisa! Companhia em muitas e muitas ocasiões!
Espero, sinceramente, que jamais possamos ferir a sensibilidade da nossa amiga Palmeira...
Ela não merece! E Alfouvés também não, pois a Palmeira, é um símbolo da nossa terra.
Que muitas e curiosas histórias em redor da Palmeira, venham a ser publicadas!
Um beijo e um abraço!
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio, ou para uma conversa prolongada.
Companheira de conversas, pouso de mtos passarinhos, arrebatadora de olhares, confidente de segredos que para sempre guardará...
Sementes e várias memórias a recordaram, e mesmo que um dia resolva partir! Ficará,aqui em alfouvés!
Beijinho rene:)* tá lindo!
sim eu tb gostei mto do conto e faz-me lembrar muitas personagens da nossa terrinha ......... e sim eu tb gosto da palmeira.... tem o seu carisma e é antiga lol eheeh
"Quantos anos é que a Palmeira já tem?"
Por informação do detentor do conhecimento e da verdade de Alfouvés, o Excelentíssimo Senhor Guarda-Livros Manuel João, a Palmeira (sim, que ela faz parte de nós, logo deve ser tratada com P!) é já centenária, passo a transcrever a resposta que ele me forneceu aquando da pergunta supra citada:
"Já tem mais de cento e tal anos..."
Quaijos & cuoves!
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